Betinho

por Márcio Moreira Alves

Texto extraído do livro Mobilização: Betinho & a cidadania dos empregados de Furnas, de 1998.

O 10º Congresso da Juventude Universitária Católica (JUC) reuniu-se no Rio de Janeiro, em 1969. As delegações do Rio e de São Paulo eram tradicionais e mornas. Pregavam a colaboração entre as classes sociais, a caridade, as boas obras. As delegações de Pernambuco e de Minas vinham cheias de ideias novas. Defendiam a participação dos católicos nas transformações sociais, aqui e agora, consequência de sua missão evangelizadora.

Os nordestinos começavam a falar de um professor de Recife e das suas propostas de ensinar o povo a ler ao mesmo tempo em que aprendia a ver como vivia: Paulo Freire. Contavam com a simpatia do jovem arcebispo de Natal, que começara a usar o rádio como instrumento de educação popular, dom Eugenio Sales.

A delegação de Minas, instruída pelo jesuíta Henrique de Lima Vaz, brandia textos do editor da revista “Esprit”, o filósofo Emmanuel Mounier, sobre a desordem estabelecida no mundo contemporâneo. Falava da necessidade de os leigos assumirem uma consciência histórica concreta, participando da transformação da sociedade em todas as suas frentes de luta. Era uma delegação rebelde, cheia de esperanças na busca de uma revolução brasileira, que criasse um socialismo nosso, diferente dos que existiam no mundo. O seu líder era um estudante de sociologia de olhar transparente e fala mansa, conhecido apenas pelo apelido: Betinho.

O resultado dos debates foi a cisão na JUC e a primeira participação de um católico nas eleições da UNE, em aliança com os comunistas. O cardeal do Rio de Janeiro, dom Jaime Câmara, recusou-se a celebrar a missa de encerramento do Congresso. Foi substituído pelo bispo-auxiliar, dom Hélder, que era dos poucos a simpatizar com as ideias dos universitários.

A reação dos bispos apressou a decisão de criar-se um instrumento de ação política independente da hierarquia e aberto a quem quisesse aderir. No ano seguinte esse instrumento político, a Ação Popular (AP), já dominava o movimento estudantil, elegendo seguidamente o presidente da UNE.

Os militantes da PA participavam de campanhas educacionais pelo país inteiro. Paulo Freire veio para o Rio liderar o programa de educação de adultos, enquanto outro teórico da educação libertadora, o cearense Lauro Oliveira Lima, tentava dinamizar o ensino secundário público. Betinho foi para o Ministério da Educação, chamado pelo ministro Paulo Tarso Santos, da ala esquerda do Partido Democrata Cristão.

Nunca mais deixou de se dedicar, corpo e alma, à missão de tirar o povo brasileiro da miséria. Ao longo dos anos, desacralizou-se completamente, rompendo os laços formais com a Igreja, mas continuou a viver tal como morreu: como um apóstolo.

Ao longo desses anos iniciáticos cruzei muitas vezes com Betinho, mas nunca tivemos tempo de nos conhecer. Depois, veio o golpe militar e ele foi exilar-se no Uruguai.

Uma noite, não lembro se em 65 ou 66, Paulinho Vieira, presidente da Ames, a associação dos secundaristas, foi procurar-me na redação. Contou que Betinho voltara ao Brasil clandestinamente, tivera uma hemorragia e estava internado num hospital do Rio, com nome falso. Perguntava-me se eu me disporia a doar-lhe sangue.

Na véspera do dia em que me tocaria doar sangue, Betinho foi preso e presos foram também todos os doadores, inclusive o Paulinho. Escapei por sorte. Betinho acabou sendo solto porque a repressão não queria arriscar um acidente com um hemofílico. Voltou para o exílio.

Foi no México que nos conhecemos de verdade, exilado também eu, quando Betinho buscava tecer uma rede de informações sobre as condições sociais não só do Brasil como de toda a América Latina. Já se interessava por informática e criara no Canadá, onde vivia, um banco de dados que foi precursor do IBASE, que viria a fundar no Rio, quando a anistia permitiu que voltássemos todos para a nossa terra.

O trabalho que Betinho desenvolveu ao longo dos 18 anos de vida que lhe restaram deu-lhe notoriedade nacional. Transformou-se, pouco a pouco, numa espécie de consciência esperançosa de um povo que poucas razões tem que esperar. Propôs as ideias mais alucinadas como se fossem a coisa mais normal do mundo e, com sua fala mansa e argumentos ilógicos, foi contaminando mais e mais gente.

Primeiro, propôs que déssemos comida a quem tem fome. Fez mais: disse ser esta uma responsabilidade de cada um de nós, disse que não participaria de qualquer organização formal e que cada um se arrumasse como entendesse, com os companheiros de trabalho ou com os vizinhos. Os Comitês de Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida se multiplicaram aos milhares. Hoje, o Natal sem fome é quase uma tradição carioca.

Depois, disse que não bastava. Era preciso criar empregos. Muitos foram criados pelos comitês e até o Governo passou a destacar milhões de reais para iniciativas neste sentido. Mais adiante, declarou que só cumprindo uma agenda social o Rio de Janeiro mereceria sediar as Olimpíadas de 2004. Quando perdemos a chance de tê-la, insistiu na agenda e, em parte, ela está em andamento. Finalmente, tocado por uma loucura franciscana, disse que devemos considerar a terra um bem social, a ser usado para conter o êxodo dos campos e produzir alimentos. A ideia caminha devagar, mas caminha.

Ninguém, na vida pública brasileira, diz a verdade sobre os mortos. Morre um bandido e não há quem afirme: “Ontem morreu um canalha”. Ao contrário. Requerem uma sessão de homenagem no Congresso. Tampouco se diz: “Ontem morreu um santo”.

Vou quebrar a tradição: sábado morreu o santo cívico Herbert José de Souza, o Betinho. Deus o tenha na sua glória.

 

2017-08-01T18:27:25+00:00julho 15th, 2017|